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28.12.11

Talvez amanhã



Talvez amanhã surja um meteoro ardente,
um pássaro de fogo ou um renque de estrelas.
Talvez no mar em ondas altas se levante
um cavalo de espuma sobre todas elas.
Talvez por dentro do silêncio, na sombria
noite, rebente como um grito a luz do dia.
Talvez, nos olhos de quem chora, a claridade
provoque uma explosão de beijos e de risos
e até na mais obscura rua da cidade
os lamentos e ais deixem de ser precisos.
Talvez na ilusão que nos permite a esperança
possamos ir em frente e prosseguir a dança.

Torquato da Luz

28.11.11

Amiúde




No vale dos afectos
ninguém está seguro:
Mingua a lembrança,
Esquece-se o rosto,
Retorna-se ao eu,
Os lábios secam, as palavras dormem, os sonhos dispersam-se, a
presença ausenta-se, há o lago de que não se vê o fundo -

E apenas as pequenas ilusões
- um café, o cigarro, a limonada -
imitam dois corações unidos ...


Raul de Carvalho

27.11.11

Poema para ti


Não me perguntes por que te amo
pergunta-me antes, por que não te amaria
e eu te responderei:
— Não te amaria, se não houvesse em ti
este sol por despertar, esta sede por matar,
e esta interminável doçura que te habita.

Eu já te amava e te adorava
antes mesmo da invenção da palavra.

Creio que não sabes,
mas tu és esta chama fria
esperando ser encarnada
na alma...És este sentir
que constrói mundos
e move corações...

Não me perguntes por que te amo
pergunta-me sim, o quanto te amo
e eu te responderei:
— Não existe palavra tão intensa
em que caibas completamente, pois tu és
este vazio ainda por preencher, o qual não se
basta nunca...

Sabes,
por vezes um simples olhar teu
desperta um lento fogo em mim
que sem demora enche-me de atrasos
e logo sei o quanto estás distante...
Mas não te preocupes
que em meu olhar
ainda reluzem as tuas pegadas
denunciando-te sob o horizonte...

Eusébio Sanjane
Moçambique

18.11.11

Exorcismo


Levanta-te, não chores.
Tens de saber que às vezes é difícil
matar o que nos mata,
ir aguçando o gume do cutelo
e movê-lo depois, logo em relâmpago,
até que o monstro seja degolado
e não fique sequer uma gota de sangue,
da cicuta voraz que lhe corria
pelas veias tão geladas, sob a pele
que terias beijado quase a medo
em busca de um sabor que fosse o fogo
e o ar e a água,
mas era só veneno adocicado,
daquele que vicia sem parecer viciar
e nos deixa sem cura a vida inteira.

Levanta-te, bem sabes,
desde o tempo dos contos infantis,
que todo o mal procura disfarçar-se
em rostos como aquele,
na perfeição volátil desse abismo
a que chamam beleza e vai ardendo
em lânguidos sorrisos e olhares
feitos de pura seda, seduzindo
espíritos como o teu,
demasiado inocentes ou perversos
para desconfiar da eternidade
ou para resistir à luz fosforescente
que, obedecendo às leis da natureza,
sempre soube atrair até à morte
o alucinado voo das borboletas.

Levanta-te, vá lá, não tenhas medo
de apertar o gatilho as vezes necessárias
para que tudo morra - os estertores
da tua alma ou do teu corpo
mesmo assim doem menos, acredita,
que o travo torvo dos piores remorsos.
E se vires que é preciso
rasgar dentro de ti, antes de serem escritos,
os mil e um poemas
que haverias de ler, talvez sem esforço,
à flor daquela face, não hesites,
porque a felicidade tem um preço
e os versos, quaisquer versos, são apenas
a memória infiel deste vento que move
as árvores lá fora enquanto é noite,
mas que às primeiras horas da manhã
deixará elevar-se um nevoeiro
tão espesso e esbranquiçado, que o amor
será nesse momento uma palavra baça
que nada te dirá, a ti ou a ninguém

Fernando Pinto do Amaral

1.11.11

João Bosco


Educar
- mais que instruir -
é abrir caminhos

é amar
um templo sagrado
em construção

amá-lo com respeito
e paciência
porque inacabado
é já perfeito
na sua imprecisa dimensão
além-ciência

Maria Teresa Maia Gonzalez

23.10.11

Enseada do olhar



Basta-me o seu sorriso.
Não preciso
de mais nada.
Basta-me, ao acordar,
a enseada
do seu olhar.

Basta-me o desafio
da sua boca,
mar acolhendo o rio
que me liberta quanto me sufoca.

Torquato da Luz

9.10.11

Rosa murcha


_ «Quarenta anos fez ontem (sexta-feira
«Da Paixão do Senhor!) a mulher doce
«Que há oito dias para aqui me trouxe
«Da minha verde e maternal roseira.

«Amou com vivo amor... e está solteira!
«Sua trança doirada desdoirou-se,
«E chora como as fontes! Antes fosse
«Em tranquilo convento ingénua freira!

«Ontem, no seu jantar sem convidados,
«Sem sobremesa, silencioso e curto,
«Só conversava com o relógio velho...

«E erguendo os olhos, d'água marejados,
«Para mim, murcha rosa, olhava a furto,
«Como se eu fosse em frente dela um espelho!

Eugénio de Castro

1.7.11

O sal da língua


Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extingue o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

Eugénio de Andrade

30.6.11

Os girassóis



Assim fremente e nua,
a luz só pode ser dos girassóis.
Estou tão orgulhoso
por este flor difícil ter entrado pela casa.
É talvez o último verão,
tão feito de abandono é meu desejo.
Mas estou orgulhoso dos girassóis.
Como se fora seu irmão.

Eugénio de Andrade

29.6.11

Três rosas


Sempre, mas sobretudo nas brumosas
Horas da tarde, quando acaba o dia,
Quando se estrela o céu, tenho a mania
De descobrir, de ver almas nas cousas.

Pendem deste gomil três lindas rosas;
Uma é rosada, a outra branca e fria,
Rubra a terceira; e a minha fantasia
Torna-as humanas, vivas, amorosas.

Sei que são rosas, rosas só! mas nada
Impede, enquanto cai lá fora a chuva,
Que a minha mente a fantasiar se ponha:

Por ser noiva a primeira, é que é rosada;
Branca a segunda está, por ser viúva;
A vermelha pecou ... e tem vergonha!

Eugénio de Castro

Com a tua letra


Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.

Fernando Assis Pacheco

A cereja


A cereja começou por uma flor
branca e singela.
(talvez tenha começado um mês antes,
num dia em que o cerdeiro surpreendeu
na sua própria carne mil ânsias e tremores
de renascer.
Isto foi
na primavera, antes de o sol ser rei.)


A flor agitou-se, murmurou
recados de amor ao ar embriagante
duma manhã de Abril.
Chamou as abelhas,
amou-as uma a uma e a elas confiou
o sémen amarelo, caprichoso do seu corpo -
como alguém que depõe um beijo sobre os dedos
e o sopra pelos ares à boca amada.
O milagre deu-se (o segundo milagre)
de esse sémen fecundar um ventre amigo, ardente,
um ovário silencioso e obscuro, antro de vida,
um templo de nascer.
E a cereja fez-se! redonda, verde, miúda,
de longa chanca a prendê-la ao ramo,
ela desarranjou
a barriga do ciganito louco
que, tremendo de impaciência, subiu, subiu,
no tronco a pino as bagas de vinagre.


Fez-se maior: um fruto claro,
pequeno planeta límpido e sereno.
Rosado
e logo após rubro, da sede de entregar-se,
piscou o olho aos estorninhos,
aos tentilhões.
Ao longo das estradas, numa versão humilde,
manteve com vagar
suas longas conversas com as silvas
e ouviu da seara ali ao lado
o deflagrar de espigas anunciando o verão.



Um dia (como uma jovem prenhe alvoroçada)
sentiu dentro de si um estigma de vida intrusa
bem arrumadinho ao coração.
Lembrou-se então das bodas consentidas,
núpcias nervosas,
carícias de um louco e breve insecto.
Matrimónio fugaz - seu filho agora
é dulcíssima broca,
arrasta-se no ventre
e perfura-lhe a carne em busca de ar e luz.



Está velha e não a colhem. Alcandorada
no último dos galhos do cerdeiro,
olha com cio e saudade os garotinhos
que passam junto ao toro. Está só e tem inveja
de outras que viu cumprir-se, comidas
com um naco de pão,
serem jantar de gente que não janta;
e outras que viu em pares, pendendo orgulhosas,
serem os brincos de tontas raparigas
que não têm outros brincos.
Está só. Encarquilhada, inútil,
recusada de melros e pardais,
a cereja lentamente se enrola sobre si
e morre.


A.M. Pires Cabral

25.6.11

O sacrário



A ausência do corpo.
Amor absoluto.

Hossanas de sol.
De chuva.
De brisa.
E de andorinhas
resvalando as asas
no ombro de uma nuvem.

Com uma hérbia mantilha
por cima velando
o teu sacrário.

José Craveirinha
Moçambique

1.6.11

Abandono



Não digas nada, deixa apenas
as mãos entregues ao calor das minhas
e olha-me nos olhos como quando
nos fitávamos, pássaros surpresos
do próprio voo, adolescente e luminoso.
Ambos sabemos desde há muito: a vida
é uma longa paciência e não há forma
de viver ao abandono dos que amamos.
Sobrevivamos, pois, no fio dos dias
que nos restam ainda, se é que o tempo
nos favorece como dantes.
E mantenhamos as mãos coladas,
olhares fitos um no outro, meu amor.

Torquato da Luz

Poética


Que é a poesia?
uma ilha
cercada
de palavras
por todos os lados

Que é o poeta?um homem
que trabalha o poema
com o suor dos eu rosto
um homem
que tem fome
como qualquer outro
homem

Cassiano Ricardo
Brasil

27.5.11

Amar é mesmo assim



ela tem uma ave nos contornos de mulher
e me vê com as escleróticas em fuga.
deixa-se ir ao tempo com um corpo de navio
enche a embala com o seu todo.
ela emergiu da “casa inabalável”
e victoriosa depôs o soba.
rendo-me à vassalagem quero-a solta e rica.
certo ou incerto os sonhos errados
tornam-se vivos: como um compêndio de
mil escrituras no amor que gesticulo.

João Tala
Angola

25.5.11

Gumes de névoa


Lágrimas?

Ou apenas dois intoleráveis
ardentes gumes de névoa
acutilando-me cara abaixo?

José Craveirinha
Moçambique

1.5.11

Quase



Quase não sei esperar o inesperado,
a rede que se parte e a outra rede
que se reparte: o não saber esperar
com a paciência antiga do silêncio
sentado mansamente ao nosso lado.

Quase não sei sonhar o amargo espanto
de estar aqui à porta de uma lua
que dá para um jardim que deu outrora
para um caminho que não finda nunca
tão pura e simplesmente ao fim da rua.

Maria Alberta Meneres

25.4.11

Monograma



A sotavento da face
colar aquoso
se desfia

E
em sua fímbria macia
meu lenço azul-escuro
discreto humedece
o monograma
Jota
Cê.

Colar
que se desfia
no próprio lapso.

José Craveirinha
Moçambique

13.4.11

Um dia



De súbito, entre a sombria
roda dos dias iguais,
às vezes sucede um dia
que se distingue dos mais.
É um dia raro, feito
à medida do teu peito,
onde o meu busca repouso.
Um dia claro, luminoso
e sobre todos perfeito.
Um dia contra o cinzento
correr dos dias iguais,
no qual me invento e te invento
para sermos o momento
que não findará jamais.

Torquato da Luz

2.4.11

Para a minha lápide




Eis-me aqui. sou eu!
nem santo nem fariseu
(serei filho de ninguém
que me importa tal ouvir?...)
Sou eu, o louco
sem lei nem fé,
o tresloucado
que em todo o lado
sonha ser...
e é!

Sou eu, tal qual!
o incompreendido
que numa noite gelada
sem luz sem nada
Deus ou o Diabo
à rua deitou.
Infausta glória!...
fui vã vitória
assim...
mas sou!

Álvaro Giesta

Entregámo-nos


entregámo-nos
um ao outro
dentro dos lençóis
brancos
à tarde
na posição mais
ortodoxa
e agora sabemos
e não sabemos
um do outro
escrevemo-nos
escrevemos

Adília Lopes

1.4.11

Eles amam-se nos meus versos


Eles amam-se nos meus versos nas
enseadas mais recônditas se escondem. os
nossos gestos repetem. partilham cerejas e
amoras. ao cais chegam sob um concreto luar. levam
galhos de castanheiros cítaras de duendes. um corvo
acode ao aroma dos seus corpos porque neles uma
rosa vai morrer. leram nos meus versos o
rumo de Samos. apartando líquidos cavalos crinas
brancas no incerto barco
partem dos meus versos

chove em Samos a chuva de um poema. Hera os
aguarda no arco-íris que
coroa o pórtico de Apolo. uma Danaide lhes
serve o vinho de cedro. colhem
morangos e romãs nos pomares litorais. nos
aromas das algas e dos mármores rimam as
palavras de adeus que nos dissemos. acode a
saliva ao gosto dos frutos novos. caminham de
mãos dadas no
meus versos

Fernão de Magalhães Gonçalves

30.3.11

Amanhecer em Estremoz



Uma a uma a noite abria
à luz matinal das rolas
as minúsculas portas da alegria.

Eugénio de Andrade

29.3.11

Cerimónia funesta



O corpo não responde
às vozes de comando,
como um cão estropiado
já desdenha os apelos
os antigos convites
às funestas moradas,
esqueceu-se do ponto
vai olvidando senhas
os códigos das grutas
acumulando lixos
as servidões austeras
diluem-se num canto
o corpo não atende chamadas
não estremece ao ruído da chave
não suporta
qualquer intromissão
secou num aterro,
os restos à vista
a memória escava
da lembrança os rastos
avidamente suga
de tal fausto os ossos,
de tão vitais cerimónias
nos tão secretos barcos
mesmo o pouco que resta
ainda se mastiga.


Fátima Maldonado

28.3.11

Mudez


Quando por fim voltares, traz no olhar
a nesga de areal onde algum dia
te encontrei entre a espuma e a maresia,
passeando a surpresa de haver mar.

Traz também nos cabelos o luar
e deixa que o veneno da poesia
nos envenene aos dois em sintonia,
como exige o mistério do lugar.

Talvez assim eu possa finalmente
segredar-te as palavras que não soube
dizer-te no momento em que te vi

pela primeira vez e, de repente,
o mundo foi tão grande que não coube
na minha voz e logo emudeci.

Torquato da Luz

25.3.11

O coval



Excêntrica
é a minha indignada
mesquinha forma de sofrer.

Lúcido
eu a desencher o mundo
tapando-me no mesmo coval.

José Craveirinha
Moçambique

8.3.11

Hoje


Hoje,
Só canto para as Mulheres:

As que passam na rua,
Aquelas que não saírem
Para a rua, as que se encontram
Na cozinha, no escritório,
Ao balcão, na enfermaria,
Na cadeia, no convento,
Na escola, no gabinete,
Na empresa, no sindicato,
No campo, no parlamento,
No lupanar ou na igreja,

Orientando o tráfego dos homens,
Chorando o filho morto pelos homens
Ou o filho feito à força pelos homens,
Lavando a roupa suja dos seus homens
Ou consertando os nervos rebentados,
Pelo silêncio-garra dos seus homens,

Essas Mães inconsoláveis
das Praças todas de Maio,
As mães de inocentes mortos
às ordens de homens-herodes,

As mães fiéis junto às cruzes
Que homens-pilatos ergueram,
Mulheres, Mães, virgens-loucas
De todos os noivos-machos,
Primas, amigas, vizinhas
De casa, de luta e sonho,
De raiva, de crença e vida,
Companheiras, inimigas,
Minhas irmãs, minha Mãe.

São Mulheres? Hoje basta.
É dia oito de Março:
Dia de eu pagar a renda
à Mulher-Mãe desta casa
Para onde há muitos anos
Mudei ao deixar a sua.
Por isso é que eu hoje canto
Só para as Mulheres: na rua
Ou noutro lado qualquer.

Salve, Mulher e Mãe! Amén!
E seja o que Deus quiser.

Lopes Morgado

6.3.11

Linguagens



Pássaro nulo
a configuração da tua ausência
o corpo a preencher-se
em ressalvas de medo
ao meu lado
doidamente longe
Dir-te-ia do sólido
confronto que imagino
ou do conforto de te poder ter
em figura de estilo

Ana Luísa Amaral

5.3.11

Onde cairá o orvalho se as pedras perderam dono



Onde cairá o orvalho se as pedras perderam dono
e história
e só as coisas torpes e destruídas
cobriram os campos e tornaram cinza o verde?

Oiço exércitos do norte do sul e do leste
fantasmas lançado o manto das trevas
os rostos exilando-se de si mesmos.
Oiço os exércitos e todo e qualquer som abafarem.
- Não ouves a chuva lá fora, a voz de uma mulher,
o choro de uma criança?
Oiço os exércitos, oiço
os exércitos.

Quero reconstruir tudo - alguém disse
e ouvimos cair as árvores.
E vimos a terra coberta de acácias
e as acácias eram sangue.

Estamos à beira de um caminho
- que caminho é este?
Inventam de novo o voo dos
pássaros.
Aqui já se ouviu o botão da rosa a desabrochar.

Maria Alexandre Dáskalos
Angola

2.3.11

Não posso adiar por mais tempo o meu grito.



Não posso adiar por mais tempo o meu grito.

Deixem-me gritar.
Deixem-me estas amarras romper.
Não me roubem o meu grito
nem a possibilidade de gritar
e dizer.

Não posso adiar por mais tempo este grito.
Adiá-lo para outro século que não este
era roubar a mim mesmo
a possibilidade de viver.

Não adio mais o meu grito.
Como não adio também o amor.
Como não adiei também
- quando a perdi -
a vontade de chorar por minha mãe.

Deixem-me chorar.
Porque muitas vezes o meu choro
é a minha forma mais pura e mais nobre
de gritar.

Já não adio mais a vontade reprimida e solitária.
Por mares e desertos longínquos
e distantes
farei o meu grito de revolta
ecoar.

Acabem-se as mordaças da vontade
a neblina nos horizontes
as fronteiras, a injustiça.
Vertam a verdade duma vez por todas
as fontes da justiça.

Não posso adiar por mais tempo o meu grito.
Não posso!
Não me amordacem
que eu não me deixo por ninguém amordaçar.
Deixem-me só mas com a minha liberdade…
Não me impeçam de gritar.

Álvaro Giesta (pseud)

1.3.11

Memória de Adriano



Nas tuas mãos tomaste uma guitarra
Copo de vinho de alegria sã
Sangria de suor e de cigarra
que à noite canta a festa da manhã.

Foste sempre o cantor que não se agarra
O que à Terra chamou amante e irmã
Mas também português que investe a marra
Voz de alaúde e rosto de maçã.

O teu coração de ouro veio do Douro
num barco de vindimas de cantigas
tão generoso como a liberdade.

Resta de ti a ilha de um Tesouro
A jóia com as pedras mais antigas.
Não é saudade, não! É amizade.

Ary dos Santos

28.2.11

O imperfeito do conjuntivos como se os impérios se dobrassem





há talvez uma por quase janela
atravessada ênclise no entanto perdida parede
o cão acorrentado na transcrição seguinte
ou melhor a miséria em cada bassorá sobre o papel
corre denso quase até a grossura
certamente a vassalagem margens mais baixas
no paladar crude olho as monarquias
o que mais me perturba
porque não são quaisquer decibéis
só espiga no rosto dessa gente
dada sombra a luz suspende-se em terra firme
quisesse reduzida fronteira
sobre a mesa bagdade ao jantar
mar exuberante rosa
perdura o imperfeito do conjuntivo ainda
como se os impérios se dobrassem
satisfeita a sede já trazem vísceras a mais nesta janela

Abreu Paxe
Angola

25.2.11

Blasfémia


No relicário que te acolhe
é-me angustioiso supor
o labor das areias
na madeira.

E meu pesadelo dos pesadelos
a iconoclasta muchém
no afã da sua lavra
orgiando-se voraz.

Blasfémia suprema
o festim.
José Craveirinha
Moçambique

24.2.11

Estava quase a morrer



Estava quase a morrer
quando viu chegar o padre
ainda teve tempo de o mandar
ir pregar para outra freguesia
antes de morrer

Joaquim Falé
Moçambique

22.2.11

Há momentos


Há momentos na vida de um Homem
Em que sabe que acordou diferente
E que já não é o mesmo para ele,
Mesmo que o seja para toda a gente...

Há momentos na vida de um Homem
Onde só pode entrar uma Mulher
Aquela que lhe trouxer
A flor do sexo
Desenhada a vermelho no ventre
E nada lhe perguntar...

Há momentos na vida de um Homem
Onde só pode entrar uma mulher
Aquela que lhe trouxer,
Num abraço total,
A ilusão da vida inteira...
E, depois, partir
Com a esperança de vida que ele semeou...

Há momentos na vida de um Homem
Onde só pode entrar uma Mulher
Para todo o Mundo se resumir
À flor vermelha
Como um bocado de sol
Que desponta numa telha!

António Cardoso
Angola

20.2.11

Poema para uma Saudade


Tudo em mim és tu
Quando a solidão cala-me a voz
E o olhar debruça-se sobre o mistério
Onde o amor e o sonho
Sussurram-me o que tanto sei
Uma intuição de gestos flagra-me os segredos
Anunciando-te no horizonte da saudade
Em vão interroga-me a tarde morna
Enquanto os abraços aconchegam-me em lembranças
E apenas o silêncio responde a minha inquietação
Para além de mim
Onde se cruzam pensamentos e anseios
Volta-se o meu olhar
Como se pronunciasse o teu nome
Cobre-se o céu em vigília
Com o manto negro da noite
Como se também ele aguardasse
O som dos teus passos
Para iluminar todo o meu universo

Fernanda Guimarães
Brasil

16.2.11

A garça estória fiscal dos Estados Unidos



cheira a glândula o sotaque de nuvens
por razão leitos de ontem
estreito sol a última rua da alma
pés na boca o repouso oco farol
istos jejuns
encharcado e puro quilo
a poça mesmo pano adensa-se
o esqueleto em cascata infixa os estados unidos
outra toalha mineral
apurava perfumes o tempo
carregava sozinho nossos corpos
na derivação ou composição suados e sujos
infinitos e esgazelados ora eufónicos
elegíveis duros rascunhos
dobram os sentidos do horizonte
aquilos na alma ficam os tentáculos envelheciam

Abreu Paxe
Angola

8.2.11

Palavras



Palavras que se dizem ao ouvido
quando nos queima a febre do desejo
e só ganham sentido
se sairem dos lábios como um beijo.
Palavras murmuradas no calor
da mútua entrega
a deixar claro que o amor
nunca sossega.
Palavras revestidas de veludo
para afagar a vida
e que no meio da corrida
são elas próprias quase tudo.

Torquato da Luz

7.2.11

Quando já não há nada


Quando já não há nada
absolutamente nada pra dizer
e cada dia te parece apenas
uma longa e inútil sequência
de vinte e quatro horas vazias

Quando uma folha de papel
é um deserto branco já sem rosto
um firmamento sem constelação
uma página nua, uma página
muda
há dois rápidos olhos que te falam
desde sempre da terra prometida

Consegues fixá-los Não tens medo?
Vê como arde súbito o seu gelo
no fundo das pupilas
e não hesites – rouba essa vertigem
ao coração da noite
porque às vezes não há outra saída
para algumas palavras que ainda podem
ser um arco uma flecha
perto do alvo que ninguém conhece

Fernando Pinto do Amaral

3.2.11

Precisão



O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.

O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.

Tudo o que existe é de uma grande exatidão.

Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.

O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.

Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

Clarice Lispector
Brasil

1.2.11

Piano solo


Há seres assim que se encerram
nos mais rasos e
desabridos campos onde
placas negras de xisto e rosa
ou grandes massas de pedra por vezes
entreabrindo laminadas estrias ocres
sem brandura
esse é o teu hirto gesto
o corpo reduzido a que
suporte apenas o rictus de um olhar
sonâmbulo e fixo e seu
trabalho dobrado sobre
as mãos escusas
já não carne: apenas
o espírito desse vento descampado
em tão cerrada e rente
soletração do tempo
tudo o mais é acre e breve riso
palavras ociosas e agitadas

(como se por elas
de tão brancas terras
te afastasses)

Maria Andresen

Prece


já não é!
tudo n'Ele fenece!
numa cruz crucificado
por mil espinhos trespassado
o seu corpo adormecido
já não quer
e arrefece

já nada resta
neste corpo amortalhado!
encobriu-se o sol poente
no horizonte
e fende ao meio, esta tarde fria,
faiscante raio.
há uma prece em agonia
põe-se mais cedo o sol
sem ocaso

Álvaro Giesta

30.1.11

Acordar tarde


tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva – e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos – e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais – nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia

Al Berto

28.1.11

A arte de ser amada


Eu sou líquida mas recolhida
no íntimo estanho de uma jarra
e em tua boca um clavicórdio
quer recordar-me que sou ária

aérea vária porém sentada
perfil que os flamingos voaram.
Pelos canteiros eu conto os gerânios
de uns tantos anos que nos separam.

Teu amor de planta submarina
procura um húmido lugar.
Sabiamente preencho a piscina
que te dê o hábito de afogar.

Do que não viste a minha idade
te inquieta como a ciência
do mundo ser muito velho
três vezes por mim rodeado
sem saber da tua existência.

Pensas-me a ilha e me sitias
de violinos por todos os lados
e em tua pele o que eu respiro
é um ar de frutos sossegados.

Natália Correia

Um revoltado adormeceu



Um revoltado adormeceu
na praia
e o mar
acalmou

Joaquim Falé
Moçambique

A eternidade em que nos pertencemos


Teus beijos ainda despertam em meus lábios
Enquanto o sol escreve a história deste amanhecer
E todas as cores deixam-se colorir no arrebol
A beleza do alvorecer rima em perfeita harmonia
Com a poesia que compuseste em meu olhar
Quando o amor me ofereceu a ti
Rebrilhando o lume da minha entrega
Teu sorriso suspenso ainda acolhe o meu despertar
E me olhas como se desejasses fotografar
Cada gesto com que revelaste o meu corpo
Abrigado em sensações e emoções, pleno de ti
A saudade agora também me presenteia a ti
Enquanto a paisagem do real oculta-se do meu olhar
E nega a tua ausência, recompondo momentos
Volta-se a vida aos lugares que nos presenciaram
Teus olhos pedintes, ressuscitados em mim
A poesia do nosso encontro continua sendo declamada
Rimando os nossos sonhos, aclamando os nossos desejos
Desnudada pelas mais doces e sublimes lembranças
Porque foi na primavera das tuas mãos
Abertas em pétalas de carícias
Que me vicejaste com a fragrância do teu amor
Ainda me é nítido o suspirar do nosso último amanhecer
Quando entregamos todas as palavras ao silêncio
Cúmplices do inconfessável, debruçados em nossa geografia
Estrangeiros de qualquer outro mundo
Encerrados pelos gestos que nos esperavam
Unidos pela eternidade de nos pertencermos...

Fernanda Guimarães
Brasil

27.1.11

Agora mesmo



Está gente a morrer agora mesmo em qualquer lado
Está gente a morrer e nós também

Está gente a despedir-se sem saber que para
Sempre
Este som já passou Este gesto também
Ninguém se banha duas vezes no mesmo instante
Tu próprio te despedes de ti próprio
Não és o mesmo que escreveu o verso atrás
Já estás diferente neste verso e vais com ele

Os amantes agarram-se desesperadamente
Eis como se beijam e mordem e por vezes choram
Mais do que ninguém eles sabem que estão a
[despedir-se

A Terra gira e nós também A Terra morre e nós
Também
Não é possível parar o turbilhão
Há um ciclone invisível em cada instante
Os pássaros voam sobre a própria despedida
As folhas vão-se e nós
Também
Não é vento É movimento fluir do tempo amor e morte
Agora mesmo e para todo o sempre
Amen


Manuel Alegre

26.1.11

Psicoalteração do Rato



rói o rato a roupa
na corda ao fim da rua
e arrota

num ror de razão o rato
rouba arroz ao porto do povo
e roto troca o troco
por trigo trancando-se atrás
do rasto raro e fica rico o rato
e por um triz não é trazido
de rastos pela rua a trote
mas chega ao trono e trás!
Rato sem roldana trás!... catrapuz!
Sem ruga roga a quem ri
rato rói rato até à raiz

mais radical a ratazana tradicional
num golpe de rins reluz ao raiar
de um enorme sol de luz
e ao farejar o rumorejar do país
corre pr'o Rand
pela ração sem retalhos
e quando regressa rola ruela
à risca e acende o rastilho
e não se rala por quem se roa

o rato resignado recolhe a rede
e rema rompendo as rugas
do mar sem rumo
e aí sem renitência reina
sem rusga nem ratoeira
e não se rala o rato roedor
rói até rédea
rato recto faz do rito revolução

Guita Júnior (Guita Jr.)
Moçambique

25.1.11

Canto de nascimento


Aceso está o fogo
prontas as mãos

o dia parou a sua lenta marcha
de mergulhar na noite.

As mãos criam na água
uma pele nova

panos brancos
uma panela a ferver
mais a faca de cortar

Uma dor fina
a marcar os intervalos de tempo
vinte cabaças de leite
que o vento trabalha manteiga

a lua pousada na pedra de afiar

Uma mulher oferece à noite
o silêncio aberto
de um grito
sem som nem gesto
apenas o silêncio aberto assim ao grito
solto ao intervalo das lágrimas

As velhas desfiam uma lenta memória
que acende a noite de palavras
depois aquecem as mãos de semear fogueiras

Uma mulher arde
no fogo de uma dor fria
igual a todas as dores
maior que todas as dores.
Esta mulher arde
no meio da noite perdida
colhendo o rio

enquanto as crianças dormem
seus pequenos sonhos de leite.

Ana Paula RibeiroTavares
Angola