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30.6.11

Os girassóis



Assim fremente e nua,
a luz só pode ser dos girassóis.
Estou tão orgulhoso
por este flor difícil ter entrado pela casa.
É talvez o último verão,
tão feito de abandono é meu desejo.
Mas estou orgulhoso dos girassóis.
Como se fora seu irmão.

Eugénio de Andrade

29.6.11

Três rosas


Sempre, mas sobretudo nas brumosas
Horas da tarde, quando acaba o dia,
Quando se estrela o céu, tenho a mania
De descobrir, de ver almas nas cousas.

Pendem deste gomil três lindas rosas;
Uma é rosada, a outra branca e fria,
Rubra a terceira; e a minha fantasia
Torna-as humanas, vivas, amorosas.

Sei que são rosas, rosas só! mas nada
Impede, enquanto cai lá fora a chuva,
Que a minha mente a fantasiar se ponha:

Por ser noiva a primeira, é que é rosada;
Branca a segunda está, por ser viúva;
A vermelha pecou ... e tem vergonha!

Eugénio de Castro

Com a tua letra


Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.

Fernando Assis Pacheco

A cereja


A cereja começou por uma flor
branca e singela.
(talvez tenha começado um mês antes,
num dia em que o cerdeiro surpreendeu
na sua própria carne mil ânsias e tremores
de renascer.
Isto foi
na primavera, antes de o sol ser rei.)


A flor agitou-se, murmurou
recados de amor ao ar embriagante
duma manhã de Abril.
Chamou as abelhas,
amou-as uma a uma e a elas confiou
o sémen amarelo, caprichoso do seu corpo -
como alguém que depõe um beijo sobre os dedos
e o sopra pelos ares à boca amada.
O milagre deu-se (o segundo milagre)
de esse sémen fecundar um ventre amigo, ardente,
um ovário silencioso e obscuro, antro de vida,
um templo de nascer.
E a cereja fez-se! redonda, verde, miúda,
de longa chanca a prendê-la ao ramo,
ela desarranjou
a barriga do ciganito louco
que, tremendo de impaciência, subiu, subiu,
no tronco a pino as bagas de vinagre.


Fez-se maior: um fruto claro,
pequeno planeta límpido e sereno.
Rosado
e logo após rubro, da sede de entregar-se,
piscou o olho aos estorninhos,
aos tentilhões.
Ao longo das estradas, numa versão humilde,
manteve com vagar
suas longas conversas com as silvas
e ouviu da seara ali ao lado
o deflagrar de espigas anunciando o verão.



Um dia (como uma jovem prenhe alvoroçada)
sentiu dentro de si um estigma de vida intrusa
bem arrumadinho ao coração.
Lembrou-se então das bodas consentidas,
núpcias nervosas,
carícias de um louco e breve insecto.
Matrimónio fugaz - seu filho agora
é dulcíssima broca,
arrasta-se no ventre
e perfura-lhe a carne em busca de ar e luz.



Está velha e não a colhem. Alcandorada
no último dos galhos do cerdeiro,
olha com cio e saudade os garotinhos
que passam junto ao toro. Está só e tem inveja
de outras que viu cumprir-se, comidas
com um naco de pão,
serem jantar de gente que não janta;
e outras que viu em pares, pendendo orgulhosas,
serem os brincos de tontas raparigas
que não têm outros brincos.
Está só. Encarquilhada, inútil,
recusada de melros e pardais,
a cereja lentamente se enrola sobre si
e morre.


A.M. Pires Cabral

25.6.11

O sacrário



A ausência do corpo.
Amor absoluto.

Hossanas de sol.
De chuva.
De brisa.
E de andorinhas
resvalando as asas
no ombro de uma nuvem.

Com uma hérbia mantilha
por cima velando
o teu sacrário.

José Craveirinha
Moçambique

1.6.11

Abandono



Não digas nada, deixa apenas
as mãos entregues ao calor das minhas
e olha-me nos olhos como quando
nos fitávamos, pássaros surpresos
do próprio voo, adolescente e luminoso.
Ambos sabemos desde há muito: a vida
é uma longa paciência e não há forma
de viver ao abandono dos que amamos.
Sobrevivamos, pois, no fio dos dias
que nos restam ainda, se é que o tempo
nos favorece como dantes.
E mantenhamos as mãos coladas,
olhares fitos um no outro, meu amor.

Torquato da Luz

Poética


Que é a poesia?
uma ilha
cercada
de palavras
por todos os lados

Que é o poeta?um homem
que trabalha o poema
com o suor dos eu rosto
um homem
que tem fome
como qualquer outro
homem

Cassiano Ricardo
Brasil