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28.12.11

Talvez amanhã



Talvez amanhã surja um meteoro ardente,
um pássaro de fogo ou um renque de estrelas.
Talvez no mar em ondas altas se levante
um cavalo de espuma sobre todas elas.
Talvez por dentro do silêncio, na sombria
noite, rebente como um grito a luz do dia.
Talvez, nos olhos de quem chora, a claridade
provoque uma explosão de beijos e de risos
e até na mais obscura rua da cidade
os lamentos e ais deixem de ser precisos.
Talvez na ilusão que nos permite a esperança
possamos ir em frente e prosseguir a dança.

Torquato da Luz

28.11.11

Amiúde




No vale dos afectos
ninguém está seguro:
Mingua a lembrança,
Esquece-se o rosto,
Retorna-se ao eu,
Os lábios secam, as palavras dormem, os sonhos dispersam-se, a
presença ausenta-se, há o lago de que não se vê o fundo -

E apenas as pequenas ilusões
- um café, o cigarro, a limonada -
imitam dois corações unidos ...


Raul de Carvalho

27.11.11

Poema para ti


Não me perguntes por que te amo
pergunta-me antes, por que não te amaria
e eu te responderei:
— Não te amaria, se não houvesse em ti
este sol por despertar, esta sede por matar,
e esta interminável doçura que te habita.

Eu já te amava e te adorava
antes mesmo da invenção da palavra.

Creio que não sabes,
mas tu és esta chama fria
esperando ser encarnada
na alma...És este sentir
que constrói mundos
e move corações...

Não me perguntes por que te amo
pergunta-me sim, o quanto te amo
e eu te responderei:
— Não existe palavra tão intensa
em que caibas completamente, pois tu és
este vazio ainda por preencher, o qual não se
basta nunca...

Sabes,
por vezes um simples olhar teu
desperta um lento fogo em mim
que sem demora enche-me de atrasos
e logo sei o quanto estás distante...
Mas não te preocupes
que em meu olhar
ainda reluzem as tuas pegadas
denunciando-te sob o horizonte...

Eusébio Sanjane
Moçambique

18.11.11

Exorcismo


Levanta-te, não chores.
Tens de saber que às vezes é difícil
matar o que nos mata,
ir aguçando o gume do cutelo
e movê-lo depois, logo em relâmpago,
até que o monstro seja degolado
e não fique sequer uma gota de sangue,
da cicuta voraz que lhe corria
pelas veias tão geladas, sob a pele
que terias beijado quase a medo
em busca de um sabor que fosse o fogo
e o ar e a água,
mas era só veneno adocicado,
daquele que vicia sem parecer viciar
e nos deixa sem cura a vida inteira.

Levanta-te, bem sabes,
desde o tempo dos contos infantis,
que todo o mal procura disfarçar-se
em rostos como aquele,
na perfeição volátil desse abismo
a que chamam beleza e vai ardendo
em lânguidos sorrisos e olhares
feitos de pura seda, seduzindo
espíritos como o teu,
demasiado inocentes ou perversos
para desconfiar da eternidade
ou para resistir à luz fosforescente
que, obedecendo às leis da natureza,
sempre soube atrair até à morte
o alucinado voo das borboletas.

Levanta-te, vá lá, não tenhas medo
de apertar o gatilho as vezes necessárias
para que tudo morra - os estertores
da tua alma ou do teu corpo
mesmo assim doem menos, acredita,
que o travo torvo dos piores remorsos.
E se vires que é preciso
rasgar dentro de ti, antes de serem escritos,
os mil e um poemas
que haverias de ler, talvez sem esforço,
à flor daquela face, não hesites,
porque a felicidade tem um preço
e os versos, quaisquer versos, são apenas
a memória infiel deste vento que move
as árvores lá fora enquanto é noite,
mas que às primeiras horas da manhã
deixará elevar-se um nevoeiro
tão espesso e esbranquiçado, que o amor
será nesse momento uma palavra baça
que nada te dirá, a ti ou a ninguém

Fernando Pinto do Amaral

1.11.11

João Bosco


Educar
- mais que instruir -
é abrir caminhos

é amar
um templo sagrado
em construção

amá-lo com respeito
e paciência
porque inacabado
é já perfeito
na sua imprecisa dimensão
além-ciência

Maria Teresa Maia Gonzalez

23.10.11

Enseada do olhar



Basta-me o seu sorriso.
Não preciso
de mais nada.
Basta-me, ao acordar,
a enseada
do seu olhar.

Basta-me o desafio
da sua boca,
mar acolhendo o rio
que me liberta quanto me sufoca.

Torquato da Luz

9.10.11

Rosa murcha


_ «Quarenta anos fez ontem (sexta-feira
«Da Paixão do Senhor!) a mulher doce
«Que há oito dias para aqui me trouxe
«Da minha verde e maternal roseira.

«Amou com vivo amor... e está solteira!
«Sua trança doirada desdoirou-se,
«E chora como as fontes! Antes fosse
«Em tranquilo convento ingénua freira!

«Ontem, no seu jantar sem convidados,
«Sem sobremesa, silencioso e curto,
«Só conversava com o relógio velho...

«E erguendo os olhos, d'água marejados,
«Para mim, murcha rosa, olhava a furto,
«Como se eu fosse em frente dela um espelho!

Eugénio de Castro

1.7.11

O sal da língua


Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extingue o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

Eugénio de Andrade

30.6.11

Os girassóis



Assim fremente e nua,
a luz só pode ser dos girassóis.
Estou tão orgulhoso
por este flor difícil ter entrado pela casa.
É talvez o último verão,
tão feito de abandono é meu desejo.
Mas estou orgulhoso dos girassóis.
Como se fora seu irmão.

Eugénio de Andrade

29.6.11

Três rosas


Sempre, mas sobretudo nas brumosas
Horas da tarde, quando acaba o dia,
Quando se estrela o céu, tenho a mania
De descobrir, de ver almas nas cousas.

Pendem deste gomil três lindas rosas;
Uma é rosada, a outra branca e fria,
Rubra a terceira; e a minha fantasia
Torna-as humanas, vivas, amorosas.

Sei que são rosas, rosas só! mas nada
Impede, enquanto cai lá fora a chuva,
Que a minha mente a fantasiar se ponha:

Por ser noiva a primeira, é que é rosada;
Branca a segunda está, por ser viúva;
A vermelha pecou ... e tem vergonha!

Eugénio de Castro

Com a tua letra


Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.

Fernando Assis Pacheco

A cereja


A cereja começou por uma flor
branca e singela.
(talvez tenha começado um mês antes,
num dia em que o cerdeiro surpreendeu
na sua própria carne mil ânsias e tremores
de renascer.
Isto foi
na primavera, antes de o sol ser rei.)


A flor agitou-se, murmurou
recados de amor ao ar embriagante
duma manhã de Abril.
Chamou as abelhas,
amou-as uma a uma e a elas confiou
o sémen amarelo, caprichoso do seu corpo -
como alguém que depõe um beijo sobre os dedos
e o sopra pelos ares à boca amada.
O milagre deu-se (o segundo milagre)
de esse sémen fecundar um ventre amigo, ardente,
um ovário silencioso e obscuro, antro de vida,
um templo de nascer.
E a cereja fez-se! redonda, verde, miúda,
de longa chanca a prendê-la ao ramo,
ela desarranjou
a barriga do ciganito louco
que, tremendo de impaciência, subiu, subiu,
no tronco a pino as bagas de vinagre.


Fez-se maior: um fruto claro,
pequeno planeta límpido e sereno.
Rosado
e logo após rubro, da sede de entregar-se,
piscou o olho aos estorninhos,
aos tentilhões.
Ao longo das estradas, numa versão humilde,
manteve com vagar
suas longas conversas com as silvas
e ouviu da seara ali ao lado
o deflagrar de espigas anunciando o verão.



Um dia (como uma jovem prenhe alvoroçada)
sentiu dentro de si um estigma de vida intrusa
bem arrumadinho ao coração.
Lembrou-se então das bodas consentidas,
núpcias nervosas,
carícias de um louco e breve insecto.
Matrimónio fugaz - seu filho agora
é dulcíssima broca,
arrasta-se no ventre
e perfura-lhe a carne em busca de ar e luz.



Está velha e não a colhem. Alcandorada
no último dos galhos do cerdeiro,
olha com cio e saudade os garotinhos
que passam junto ao toro. Está só e tem inveja
de outras que viu cumprir-se, comidas
com um naco de pão,
serem jantar de gente que não janta;
e outras que viu em pares, pendendo orgulhosas,
serem os brincos de tontas raparigas
que não têm outros brincos.
Está só. Encarquilhada, inútil,
recusada de melros e pardais,
a cereja lentamente se enrola sobre si
e morre.


A.M. Pires Cabral

25.6.11

O sacrário



A ausência do corpo.
Amor absoluto.

Hossanas de sol.
De chuva.
De brisa.
E de andorinhas
resvalando as asas
no ombro de uma nuvem.

Com uma hérbia mantilha
por cima velando
o teu sacrário.

José Craveirinha
Moçambique

1.6.11

Abandono



Não digas nada, deixa apenas
as mãos entregues ao calor das minhas
e olha-me nos olhos como quando
nos fitávamos, pássaros surpresos
do próprio voo, adolescente e luminoso.
Ambos sabemos desde há muito: a vida
é uma longa paciência e não há forma
de viver ao abandono dos que amamos.
Sobrevivamos, pois, no fio dos dias
que nos restam ainda, se é que o tempo
nos favorece como dantes.
E mantenhamos as mãos coladas,
olhares fitos um no outro, meu amor.

Torquato da Luz

Poética


Que é a poesia?
uma ilha
cercada
de palavras
por todos os lados

Que é o poeta?um homem
que trabalha o poema
com o suor dos eu rosto
um homem
que tem fome
como qualquer outro
homem

Cassiano Ricardo
Brasil

27.5.11

Amar é mesmo assim



ela tem uma ave nos contornos de mulher
e me vê com as escleróticas em fuga.
deixa-se ir ao tempo com um corpo de navio
enche a embala com o seu todo.
ela emergiu da “casa inabalável”
e victoriosa depôs o soba.
rendo-me à vassalagem quero-a solta e rica.
certo ou incerto os sonhos errados
tornam-se vivos: como um compêndio de
mil escrituras no amor que gesticulo.

João Tala
Angola

25.5.11

Gumes de névoa


Lágrimas?

Ou apenas dois intoleráveis
ardentes gumes de névoa
acutilando-me cara abaixo?

José Craveirinha
Moçambique

1.5.11

Quase



Quase não sei esperar o inesperado,
a rede que se parte e a outra rede
que se reparte: o não saber esperar
com a paciência antiga do silêncio
sentado mansamente ao nosso lado.

Quase não sei sonhar o amargo espanto
de estar aqui à porta de uma lua
que dá para um jardim que deu outrora
para um caminho que não finda nunca
tão pura e simplesmente ao fim da rua.

Maria Alberta Meneres

25.4.11

Monograma



A sotavento da face
colar aquoso
se desfia

E
em sua fímbria macia
meu lenço azul-escuro
discreto humedece
o monograma
Jota
Cê.

Colar
que se desfia
no próprio lapso.

José Craveirinha
Moçambique

13.4.11

Um dia



De súbito, entre a sombria
roda dos dias iguais,
às vezes sucede um dia
que se distingue dos mais.
É um dia raro, feito
à medida do teu peito,
onde o meu busca repouso.
Um dia claro, luminoso
e sobre todos perfeito.
Um dia contra o cinzento
correr dos dias iguais,
no qual me invento e te invento
para sermos o momento
que não findará jamais.

Torquato da Luz