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31.3.10

Poeta




Poeta o que é?
Um homem que leva
o facho da treva
no fundo da mina
- mas apenas vê
o que não ilumina.

José Gomes Ferreira

Viagem na Noite Longa

Selô,1962

Na noite longa
minha alma
chora sua fome de séculos

Meus olhos crescem
e choram famintos de eternidade
até serem duas estrelas
brilhantes
no céu imenso.

E o infinito se detém em mim

Na noite longa
uma remotíssima nostalgia
afunda minha alma
E eu choro marítimas lágrimas
Enquanto meu desejo heróico
de engolir os céus
se alarga
e é já céu

Tenho então
a sensação esparsamente longa
de vogar no absoluto.

Mário Fonseca
Cabo Verde

30.3.10

Outra Beleza



Uns exibem insólitos perfis
de outra beleza
maquilhada
no mato.

ou
do viés
ou de frente
perfeitos modelos de caveira
desfilam sem nariz.

José Craveirinha
Moçambique

Quatro vezes sete versos Para Aquela Rapariga


Enquanto não vens nem tu sabes é assim
uma casa que só cheirasse a uvas de setembro
Este quarto esta sala onde o som contínuo é Out of
Nowhere soprado pelo Charlie Parker
Há calma com vento que vem quente enquanto não vens
e podes ter a certeza que o soalho vai ter aroma de estações
A que menos entenderes para melhor a desejares

Entretenho-me com uma breve meditação
sobre o perfil de um velho índio apsaroke
e tenho-te rapariga na visão do vale dos bisontes
onde esperas o bafo morno do fim da tarde
ajeitando o lenço na cabeça e sorrindo
entre o voo de alguns insectos
e a recordação destes dedos que te escrevem

Não me leves a mal se te falo de coisas tão domésticas
mas neste falar assim é que as plantas destes vasos
crescem para o tecto e é lá que está o éden delas
ainda que o vá sendo sempre o ar e
a luz que tomam
cada dia perto muito perto das menores palavras
com que te aviso do paraíso tão à mão

Abel Neves

29.3.10

Bissau é um enigma


Bissau é um enigma
Guiné é um mistério
mergulhada numa profunda angústia
eu a construir
e tu a destruíres
Porquê, meu irmão
pergunto
se o caminho é único?

Odete Costa Semedo
Guiné-Bissau

Quiseste-me


Quiseste-me e depois foste desmoronando
glóbulo a glóbulo
alteraste sistemas rebentando artérias
devassaste lugares
deixando vestígios de razão
como sobram nas neves mais eternas
as latas de cerveja os restos do fiambre
em papéis suados de gordura
é urgente fuzilar inúteis
o que invade e destrói o nosso próprio concentrado
campo
lógicas ordenam e revelam
organizam as cinzas do que não se mede
atrevem-se a manchar
sítios remotos
o que de cada ser faz parte incerta
na deriva real da procura
tentam riscar sagrados hipotálamos
com o ponteiro dos factos
a geometria a que te condenaste
vai encerrando os dados que precisas
para jogos de risco, outras encantações
e sempre mais couraças
inerme comandado por regras brutas
como escamas de aço
suturas bolas de natal
sem perceber que pouco tempo existem
irisadas subitamente estalam.


Fátima Maldonado

28.3.10

Noite por Ti Despida



Adulta é a noite onde cresce
o teu corpo azul. A claridade
que se dá em troca dos meus ombros
cansados. Reflexos
coloridos. Amei
o amor. Amei-te meu amor sobre ervas
orvalhadas. Não eras tu porém
o fim dessa estrada
sem fim. Canto apenas (enquanto os álamos
amadurecem) a transparência, o caminho. A noite
por ti despida. Lume e perfume
do sol. Íntimo rumor do mundo.

Casimiro de Brito

Coração sem Imagens


Deito fora as imagens.
Sem ti, para que me servem
as imagens?

Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em qualquer parte
e cuja direcção
é igualmente passageira
e verídica.

Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
numa casa deserta,
ao trémulo vigor de todos os teus gestos
invisíveis,
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a não ser eu.

Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão
felicidade a ninguém.

Era mais difícil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.

Era mais difícil inventar-te,
e eu te inventei.

Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.

E hei-de ser feliz ainda que
isso não seja ser feliz.

Raúl de Carvalho

E Agora Só Me Restam


e agora só me restam
os poetas gregos.
O silêncio diz - esquece.
E o espinho da rosa enterrado no peito
é meu.

Os deuses não assistiram a isto.

Maria Alexandre Dáskalos
Angola

27.3.10

Em Teus Dentes



Em teus dentes
o sol
é diamante de fantasia
a lua
caco-de-garrafa
e
a mentira
verdade vagabunda
errando de cágado
em torno da lagoa dos olhos da noite
na treva aveludada
de tua pele
os dedos curiosos
são estrelas de marfim
à busca
de um dia caprichoso
despontando de miragem
por detrás das corcundas de elefantes adormecidos

(Angola, angolê, angolêma)

Arlindo Barbeitos
Angola

Eu sei que vou te amar



Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
A cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que eu vou te amar

E cada verso meu será pra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida

Eu sei que vou chorar
A cada ausência sua eu vou chorar
Mas cada volta sua há de apagar
O que essa ausência sua me causou

Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida

Vinicius de Moraes
Brasil

Nem botas nem canhões


Trago no corpo
as marcas da vida
No coração
Os sonhos abortados
Na pele as chagas do sofrimento

Meus olhos cegaram
De tanta dor enxergarem
Meus ouvidos ensurdeceram
Com o choro da criança faminta
Minha boca se calou
Para não mais clamar minha dor

Mas no âmago do meu ser
Na minha essência mais profunda
Guardei a força do querer
E nem ventos nem marões
Nem botas nem canhões
Nem sórdidas tentações
Minha marcha travarão

Sigo em busca da verdade
Novos sonhos brotarão
Novos mundos se abrirão
Em cada riso de criança acalentada
Colherei um pedaço de vitória
E de riso em riso
De vitória em vitória
Se vai edificando um mundo melhor!

Filomena Embaló
Guiné

Idade da Pedra




(há um discurso de facas nas fronteiras lívidas do rosto.
a madrugada morre de leucemia. e ainda as florestas
não revelam as crateras abertas.
línguas de fogo economizam tristezas. deslizam águas
na luz da pedra.
oh, vidas de pedra, náuseas de pedra. na dura frágil
idade da pedra.)

Conceição Cristóvão
Angola

26.3.10

Paixão


Ficávamos no quarto até anoitecer, ao conseguirmos
situar num mesmo poema o coração e a pele quase podíamos
erguer entre eles uma parede e abrir
depois caminho à água.

Quem pelo seu sorriso então se aventurasse achar-se-ia
de súbito em profundas minas, a memória
das suas mais longínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.

Ficávamos no quarto, onde por vezes
o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior
paixão que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.

Luis Miguel Nava

24.3.10

A Arte de Viver




Habito no halo
dos meus versos
onde incansavelmente
rimo palavras sem rima
e seco lágrimas sem pranto

é a arte de viver...

como lacrar a vida e o amor
sem cantar?
como vencer o tédio e o temor
sem bailar?
eis a razão
porque sonho sem sono
porque voo sem asas
porque vivo sem vida

no avesso dos versos escondo
o tesouro da minha contrariedade
o mistério da minha enfermidade
e o feitiço da minha eternidade

Armando Artur
Moçambique

Confissão


Dizem que o amor é cego,
não nego,
por isso te abro os olhos:
não tenho bens nem alqueires,
eu não sou flor que se cheire,
nem tão boa cozinheira,
(bem capaz que ainda me piches
por só comer sanduíches),
minha poesia é fuleira,
tenho idéias de jerico,
um cio meio impudico
como as cadelase as gatas,
às vezes me torno chata
por me opor ao que comtemplo,
sei que sou péssimo exemplo,
por pouca coisa me grilo,
talvez por mim percas quilos,
eu não sei se valho a pena,
iguais a mim, há centenas,
desejo te ser sincera.
Mas no fundo o amor espera
que grudes qual carrapicho:
são tão grandes meu rabicho
e minha paixão por ti,
que não estão no gibi...
Ao te ver, viro pamonha,
sem ação, e sem vergonha
o meu ser inteiro goza.
Por isso, pra encurtar prosa,
do teu corpo, cada poro
eu adoro adoro adoro...


Leila Mícollis
Brasil

23.3.10

Feições para um Retrato



Na agreste paisagem de dunas
expira a vastidão da savana.
No areal se sepulta o choro do mar
em seu clamor e seu soluço
e a fúria do vento largo
veste de saliva os arbustos sobreviventes.

Mangal de raizes nuas
doí-me o desespero dos teus dedos
ainda longos e cravados à terra.
Na orla do tempo, as aves marinhas
contemplam os despojos com olhos tranquilos
e nos conturbamo-nos à vista
dos despojos e do jeito dos pássaros.

Aqui, só nos vemos
a delgada fímbria do encontro
da morte e da vida
e conturbamo-nos.
E, amando-nos,
avivamos o traço esguio e sinuoso
dessa fímbria de encontro de morte e da vida.

Fernando Couto
Moçambique

De uma Noite


O meu olhar ainda confessa
A ternura que deixas em mim
Quando me ofereces as tuas mãos
E fazes meu, o teu destino
Conduzes-me as paisagens
Que meus passos tanto anseiam
Devolves aos meus abraços
O aconchego dos teus braços
Acolhendo minhas longas esperas
No tempo em que ausente de ti
Apenas fui silêncio e solidão

É que quando vens assim
Deitas o perfume da tua entrega
No horizonte da minha saudade
Teu olhar despe-me em carícias
E meu corpo te sorri consentido
Sussurrando-te afagos e doçuras
É na nudez dos teus olhares
Que se revela a intimidade
De todos os meus desejos

O olhar perdido na distância
Ainda procura a tua voz
Entregue a carícia das tuas palavras
No veludo do silêncio da madrugada
Ouço a melodia da tua falta
E recosto o rosto à solidão do lembrar-te
Há suavidade em cada momento
Na delicadeza da construção do afeto
Na decisão inabalável de ser feliz
Agora que te foste
Deixaste em meus lábios
A saudade que ainda eterna
Uma vez mais te beija...

Fernanda Guimarães
Brasil

21.3.10

A Sombra das Galera



Ah! Angola, Angola, os teus filhos escravos
nas galeras correram as rotas do Mundo.
Sangrentos os pés, por pedregosos trilhos
vinham do sertão, lá do sertão, lá bem do fundo
vergados ao peso das cargas enormes...
Chegavam às praias de areias argênteas
que se dão ao Sol ao abraço do mar...
... Que longa noite se perde na distância!

As cargas enormes
os corpos disformes.
Na praia, a febre, a sede, a morte, a ânsia
de ali descansar
Ah! As galeras! As galeras!
Espreitam o teu sono tão pesado
prostrado do torpor em que mal te arqueias.
Depois, apenas pestanejam as estrelas,
o suplício de arrastar dessas correias.

Escravo! Escravo!

O mar irado, a morte, a fome,
A vida... a terra... o lar... tudo distante.
De tão distante, tudo tão presente, presente
como na floresta à noite, ao longe, o brilho
duma fogueira acesa, ardendo no teu corpo
que de tão sentido, já não sente.

A América é bem teu filho
arrancado à força do teu ventre.

Depois outros destinos dos homens, outros rumos...
Angola vais na sede da conquista.
Hoje no entrechoque das civilizações antigas
essa figura primitiva se levanta
simples e altiva.
O seu cãntico vem de longe e canta
ausências tristes de gerações passadas e cativas.
E onde vão seus rumos? Onde vão seus passos?

Ah! Vem, vem numa força hercúlea
gritar para os espaços
como os dardos do Sol ao Sol da vida
no vigor que em ti próprio reverberas:

- Não sou cativo!
A minha alma é livre, é livre
enfim!
Liberto, liberto, vivo...

Mais... porque esperas?
Ah! Mata, mata no teu sangue
o presságio da sombra das galeras!

Alexandre Dáskalos
Angola

19.3.10

De Antemão



Tocaram-me na cabeça com um dedo terrificamente
doce, Sopraram-me,
Eu era límpido pela boca dentro: límpido
engolfamento,
O sorvo do coração a cara
devorada,
O sangue nos lençóis tremia ainda:
metia medo,
Se um cometa pudesse ser chamado como um animal:
ou uma braçada de perfume
tão agudo
que entrasse pela carne: se fizesse unânime
na carne
como um clarão,
Um anel vivo num dedo que vai morrer:
tocando ainda
a cabeça o rítmico pavor
do nome,
O leite circulava dentro delas,
É assim que as mães se alumiam
e trazem para si o espaço todo
como
se dançassem,
São em si mesmas uma lenta
matéria ordenada, Ou uma
crispação: uma ressaca,
E quando me tocaram na cabeça com um dedo baptismal:
eu já tinha uma ferida
um nome,
E o meu nome mantinha as coisas do mundo
todas
levantadas

Herberto Helder

Aprendizes de Feiticeiro


Apenas aprendizes, carecemos talvez
o clínico rigor teutónico.
Não o entusiasmo, porém.
Ignoramos a técnica aperfeiçoada
dos quebra-luzes, o refinamento
de certos processos mais requintados.
Mal iniciámos este artesanato
e já abundam os souvenirs
embora um pouco toscos e mal curtidos.

Dachau, Belsen, Auschwitz
operavam sobre polidas esferas
a uma escala certamente industrial
que nos confere este ar de amadores
canhestros e um pouco provincianos
com que misturamos jogos reeducativos,
filarmónicas de aldeia e récitas,
a coisas que deviam ser objecto
exclusivo das ciências aplicadas.

Haja paciência: lá chegaremos.

Rui Knopfli
Moçambique

Primeiro Amor



gostava muito dele
mas nunca lhe disse isso
porque a minha criada tinha-me avisado
se gostar de um rapaz
nunca lhe diga que gosta dele
se diz
ele faz pouco de si para sempre
os rapazes são maus
eu não era bela
nem sabia quem tinha pintado Os Pestíferos de Jaffa
resolvi assim escrever-lhe cartas anónimas
escrevia o rascunho num caderno pautado
não sei hoje o que escrevia
mas sei que nunca escrevi
gosto muito de ti
e depois pedia a uma rapariga muito bonita
que passasse as cartas a limpo
eu acreditava que tem tinha uns cabelos
assim loiros e a pele fina
devia ter uma letra muito melhor que a minha
agora que conto isto
vejo que deixo muitas coisas de fora
por exemplo que o meu primeiro amor
não foi este mas Paulo
o irmão da rapariga bonita

Adília Lopes

16.3.10

Maria



No temporal da revolução
os baús de enxovais
preciosos
das raparigas casadoiras
naufragaram.
Ainda hoje me consolo
com as leituras de Marx.
E, no entanto,
perdi meu enxoval.

Alexandre Dáskalos
Angola

14.3.10

Vimos chegar as andorinhas



Vimos chegar as andorinhas
conjugarem-se as estrelas
impacientarem-se os ventos
Agora
esperemos o verão
do teu nascimento tranquilos, preguiçosos
Tão inseparáveis as nossas fomes
Tão emaranhadas as nossas veias
Tão indestrutíveis os nossos sonhos
Espera-te um nome
breve como um beijo
e o reino ilimitado
dos meus braços
Virás
como a luz maior
no solstício de junho.

Rosa Lobato de Faria

11.3.10

Canção de Embalar



"Dorme Maninho
pra não vir Ti Lobo..."

Maninho
volta-se e dorme
no colchão de saco vazio
sobre a terra batida.

Ao lado no chão dormindo também
o naviozinho de lata
que fez com suas mãos...
Apaga-se a luz.

Maninho acorda depois
por causa da voz falando baixinho
segredando
no meio escuro...

Não fala de mamãe...
Ti Lobo talvez...
Mas nhô Chico Polícia há dias contava:
"Ti Lobo não tem..."

Essa voz nocturna segredando...
O homem branco talvez
que lá vai de vez enquando...

"Dorme Maninho
pra não vir Ti Lobo..."

Volta-se e torna a dormir...

Amanhã cedo vai correr o naviozinho de lata
nas poças da Praia Negra...

Jorge Barbosa
Cabo Verde

7.3.10

Stella



Já raro e mais escasso
A noite arrasta o manto,
E verte o último pranto
Por todo o vasto espaço.

Tíbio clarão já cora
A tela do horizonte,
E já de sobre o monte
Vem debruçar-se a aurora.

À muda e torva irmã,
Dormida de cansaço,
Lá vem tomar o espaço
A virgem da manhã.

Uma por uma, vão
As pálidas estrelas,
E vão, e vão com elas
Teus sonhos, coração.

Mas tu, que o devaneio
Inspiras do poeta,
Não vês que a vaga inquieta
Abre-te o húmido seio?

Vai. Radioso e ardente,
Em breve o astro do dia,
Rompendo a névoa fria,
Virá do roxo oriente.

Dos íntimos sonhares
Que a noite protegera,
De tanto que eu vertera
Em lágrimas a pares,

Do amor silencioso,
Místico, doce, puro,
Dos sonhos de futuro,
Da paz, do etéreo gozo,

De tudo nos desperta
Luz de importuno dia;
Do amor que tanto a enchia
Minha alma está deserta.

A virgem da manhã
Já todo o céu domina...
Espero-te, divina,
Espero-te, amanhã.

Machado de Assis
Brasil

6.3.10

Uma Negra Convertida



Minha avó negra, de panos escuros,
da cor do carvão...
Minha avó negra de panos escuros
que nunca mais deixou...

Andas de luto,
toda és tristeza...
Heroína de idéias,
rompeste com a velha tradição
dos cazumbis, dos quimbandas...

Não xinguilas, no óbito.
Tuas mãos de dedos encarquilhados,
tuas mãos calosas da enxada,
tuas mãos que preparam mimos da Nossa Terra,
quitabas e quifufutilas - ,
tuas mãos, ora tranquilas,
desfilam as contas gastas de um rosário já velho...
Teus olhos perderam o brilho;
e da tua mocidade
só te ficou a saudade
e um colar de missangas...
Avózinha,
às vezes, ouço vozes que te segredam
saudades da tua velha sanzala,
da cubata onde nasceste,
das algazarras dos óbitos,
das tentadoras mentiras do quimbanda,
dos sonhos de alambamento
que supunhas merecer...
E penso que... se pudesses,
talvez revivesses
as velhas tradições!

Mário Antonio
Angola

5.3.10

Anónimo


Sou linda; quando no cinema você roça
o ombro em mim aquece, escorre, já não sei mais
quem desejo, que me assa viva, comendo
coalhada ou atenta ao buço deles, que ternura
inspira aquele gordo aqui, aquele outro ali, no
cinema é escuro e a tela não importa, só o lado,
o quente lateral, o mínimo pavio. A portadora
deste sabe onde me encontro até de olhos
fechados; falo pouco; encontre; esquina de
Concentração com Difusão, lado esquerdo de
quem vem, jornal na mão, discreta.

Ana Cristina César
Brasil

4.3.10

Contratados



A hora do sol posto
as rolas traçam
desenhos de feitiços sinuosos

caminhos sob a calma das mulembas

e abraços de segredos e silêncios.

...longe...muito longe
um risco brando
acorda os ecos dos quissanjes
vermelho como o fogo das queimadas
com imagens de mucuisses e luar.

Canções que os velhos cantam
murmurando.

e nos homens cansados de lembrar
a distância vai calando mágoas.

renasce em cada braço
a força de um secreto entendimento.

Costa Andrade
Angola

1.3.10

A vida sem palavras




Entre riso e sangue,
cabeça e espada,
entrada e saída,
flor e escarro,
sempre a vida,
a vida sem mais nada,
entre estrela e barro.

Entre homens e bichos,
entre rua e escadas,
entre grito e nojo,
a vida com seus lixos
e mãos violadas,
entre mar e tojo.

Entre uivo e poema,
entre trégua e luta,
vida no cinema,
no café, na cama,
vida absoluta.

António Rebordão Navarro