794ceedb99cf (340x196, 25Kb)

30.3.11

Amanhecer em Estremoz



Uma a uma a noite abria
à luz matinal das rolas
as minúsculas portas da alegria.

Eugénio de Andrade

29.3.11

Cerimónia funesta



O corpo não responde
às vozes de comando,
como um cão estropiado
já desdenha os apelos
os antigos convites
às funestas moradas,
esqueceu-se do ponto
vai olvidando senhas
os códigos das grutas
acumulando lixos
as servidões austeras
diluem-se num canto
o corpo não atende chamadas
não estremece ao ruído da chave
não suporta
qualquer intromissão
secou num aterro,
os restos à vista
a memória escava
da lembrança os rastos
avidamente suga
de tal fausto os ossos,
de tão vitais cerimónias
nos tão secretos barcos
mesmo o pouco que resta
ainda se mastiga.


Fátima Maldonado

28.3.11

Mudez


Quando por fim voltares, traz no olhar
a nesga de areal onde algum dia
te encontrei entre a espuma e a maresia,
passeando a surpresa de haver mar.

Traz também nos cabelos o luar
e deixa que o veneno da poesia
nos envenene aos dois em sintonia,
como exige o mistério do lugar.

Talvez assim eu possa finalmente
segredar-te as palavras que não soube
dizer-te no momento em que te vi

pela primeira vez e, de repente,
o mundo foi tão grande que não coube
na minha voz e logo emudeci.

Torquato da Luz

25.3.11

O coval



Excêntrica
é a minha indignada
mesquinha forma de sofrer.

Lúcido
eu a desencher o mundo
tapando-me no mesmo coval.

José Craveirinha
Moçambique

8.3.11

Hoje


Hoje,
Só canto para as Mulheres:

As que passam na rua,
Aquelas que não saírem
Para a rua, as que se encontram
Na cozinha, no escritório,
Ao balcão, na enfermaria,
Na cadeia, no convento,
Na escola, no gabinete,
Na empresa, no sindicato,
No campo, no parlamento,
No lupanar ou na igreja,

Orientando o tráfego dos homens,
Chorando o filho morto pelos homens
Ou o filho feito à força pelos homens,
Lavando a roupa suja dos seus homens
Ou consertando os nervos rebentados,
Pelo silêncio-garra dos seus homens,

Essas Mães inconsoláveis
das Praças todas de Maio,
As mães de inocentes mortos
às ordens de homens-herodes,

As mães fiéis junto às cruzes
Que homens-pilatos ergueram,
Mulheres, Mães, virgens-loucas
De todos os noivos-machos,
Primas, amigas, vizinhas
De casa, de luta e sonho,
De raiva, de crença e vida,
Companheiras, inimigas,
Minhas irmãs, minha Mãe.

São Mulheres? Hoje basta.
É dia oito de Março:
Dia de eu pagar a renda
à Mulher-Mãe desta casa
Para onde há muitos anos
Mudei ao deixar a sua.
Por isso é que eu hoje canto
Só para as Mulheres: na rua
Ou noutro lado qualquer.

Salve, Mulher e Mãe! Amén!
E seja o que Deus quiser.

Lopes Morgado

6.3.11

Linguagens



Pássaro nulo
a configuração da tua ausência
o corpo a preencher-se
em ressalvas de medo
ao meu lado
doidamente longe
Dir-te-ia do sólido
confronto que imagino
ou do conforto de te poder ter
em figura de estilo

Ana Luísa Amaral

5.3.11

Onde cairá o orvalho se as pedras perderam dono



Onde cairá o orvalho se as pedras perderam dono
e história
e só as coisas torpes e destruídas
cobriram os campos e tornaram cinza o verde?

Oiço exércitos do norte do sul e do leste
fantasmas lançado o manto das trevas
os rostos exilando-se de si mesmos.
Oiço os exércitos e todo e qualquer som abafarem.
- Não ouves a chuva lá fora, a voz de uma mulher,
o choro de uma criança?
Oiço os exércitos, oiço
os exércitos.

Quero reconstruir tudo - alguém disse
e ouvimos cair as árvores.
E vimos a terra coberta de acácias
e as acácias eram sangue.

Estamos à beira de um caminho
- que caminho é este?
Inventam de novo o voo dos
pássaros.
Aqui já se ouviu o botão da rosa a desabrochar.

Maria Alexandre Dáskalos
Angola

2.3.11

Não posso adiar por mais tempo o meu grito.



Não posso adiar por mais tempo o meu grito.

Deixem-me gritar.
Deixem-me estas amarras romper.
Não me roubem o meu grito
nem a possibilidade de gritar
e dizer.

Não posso adiar por mais tempo este grito.
Adiá-lo para outro século que não este
era roubar a mim mesmo
a possibilidade de viver.

Não adio mais o meu grito.
Como não adio também o amor.
Como não adiei também
- quando a perdi -
a vontade de chorar por minha mãe.

Deixem-me chorar.
Porque muitas vezes o meu choro
é a minha forma mais pura e mais nobre
de gritar.

Já não adio mais a vontade reprimida e solitária.
Por mares e desertos longínquos
e distantes
farei o meu grito de revolta
ecoar.

Acabem-se as mordaças da vontade
a neblina nos horizontes
as fronteiras, a injustiça.
Vertam a verdade duma vez por todas
as fontes da justiça.

Não posso adiar por mais tempo o meu grito.
Não posso!
Não me amordacem
que eu não me deixo por ninguém amordaçar.
Deixem-me só mas com a minha liberdade…
Não me impeçam de gritar.

Álvaro Giesta (pseud)

1.3.11

Memória de Adriano



Nas tuas mãos tomaste uma guitarra
Copo de vinho de alegria sã
Sangria de suor e de cigarra
que à noite canta a festa da manhã.

Foste sempre o cantor que não se agarra
O que à Terra chamou amante e irmã
Mas também português que investe a marra
Voz de alaúde e rosto de maçã.

O teu coração de ouro veio do Douro
num barco de vindimas de cantigas
tão generoso como a liberdade.

Resta de ti a ilha de um Tesouro
A jóia com as pedras mais antigas.
Não é saudade, não! É amizade.

Ary dos Santos