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31.5.10

Prelúdio



Quando o descobridor chegou à primeira ilha
nem homens nus
nem mulheres nuas
espreitando
inocentes e medrosos
detrás da vegetação.
Nem setas venenosas vindas no ar
nem gritos de alarme e de guerra
ecoando pelos montes.

Havia somente
as aves de rapina
de garras afiadas
as aves marítimas
de voo largo
as aves canoras
assobiando inéditas melodias.

E a vegetação
cuja sementes vieram presas
nas asas dos pássaros
ao serem arrastadas para cá
pelas fúrias dos temporais.

Quando o descobridor chegou
e saltou da proa do escaler varado na praia
enterrando
o pé direito na areia molhada

e se persignou
receoso ainda e surpreso
pensando n'El-Rei
nessa hora então
nessa hora inicial
começou a cumprir-se
este destino ainda de todos nós.

Jorge Barbosa
Cabo Verde

30.5.10

Meus oito anos



Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar - é lago sereno,
O céu - um manto azulado,
O mundo - um sonho dourado,
A vida - um hino d'amor!

Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingénuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
- Pés descalços, braços nus -
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
- Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!

Casimiro de Abreu
Brasil

29.5.10

Coraçãozinho



Coraçãozinho que bate
tic-tic
Reloginho de Papai
tic-tac
Vamos fazer uma troca
tic-tic-tic-tac
Relógio fica comigo
tic-tic
dou coração a Papai
tic-tic-tac

Henriqueta Lisboa
Brasil

Saudade



saudade
é o tempo de pacassas pardas
e macacos sem rabo servindo de administradores
quando o calor ia derretendo o céu
e a chuva se vendia na farmácia
do comerciante de cabelos de fio
saudade
é o tempo de patos bravos
e macacos sem rabo servindo de padres

quando o medo ia gelando a terra
e o pranto se dava de beber aos porcos
do comerciante de cabelos de fio

(Angola, Angolê, Angolêma)

Arlindo Barbeitos
Angola

28.5.10

A Borralheira


Meigos pés, pequeninos, delicados,
Como um duplo lilás, se os beija-flores
Vos descobrissem entre as outras flores,
Que seria de vós, pés adorados!

Como dois gémeos silfos animados,
Vi-vos ontem pairar entre os fulgares
Do baile, ariscos, brancos, tentadores,
Mas, ai de mim! como os mais pés, calçados.

Calçados como os mais! que desacato!
Disse eu... Vou já talhar-lhes um sapato
Leve, ideal, fantástico, secreto...

Ei-lo. Resta saber, anjo faceiro,
Se acertou na medida o sapateiro:
Mimosos pés, calçai este soneto.

Luís Guimarães Júnior
Brasil

Libertação



Das mentiras loucas que me envolvem
Vou quebrando os liames um a um
E da angústia da libertação
Nascerá um dia a paz
Do ser e do não ser.

Das mentiras vãs que me amordaçam
Os véus arrancarei a um e um
Tristes despojos dum passado velho
Que em mim se quis perpetuar.

E deixarei um rasto de desilusões;
Um caminho de lágrimas choradas;
Um pouco do que fui em cada dia.

Mas ficarei seguro e afirmado,
Com a serenidade dum Buda na floresta,
Com a nudez dum Cristo no redil.

in Permanência
Antero Abreu
Angola

27.5.10

O jumento



No alto da crestada ribanceira
pasta o jumento. Seus grandes dentes amarelos
trituram o capim seco que restou
de tanta primavera.
A terra é escura. No céu inteiramente azul
o sol lança fulgores que aquecem
tomates, alcachofras, berinjelas.
O jumento contempla o dia trêmulo
de tanta claridade
e emite um relincho, seu tributo
à beleza do universo

Lêdo Ivo
Brasil

Índicos caminhos



Quero me afogar por estes caminhos em que morrem as flores de cada luar.

Quero recriar as raízes de cada noite e entender como morre o sol na boca dos peixes...

Deixa-me entender os segredos que suavemente o vento revela aos pinheiros,

Provar da curiosidade da terra que despe as rosas dos seus vestidos vermelhos, ou mesmo das suas folhas que pairam no ar como verdes aves de esperança.

( Digam-me quem amputou o sexo das rochas, que já não gemem, quando as cálidas mãos da tarde as afagam.)
Quem silenciou o cantar dos búzios,
que embalavam as revoltas ondas do mar?

Eusébio Sanjane
Moçambique

amo-te em azul




amo-te em azul. beijei-te em azul claro
quando claro eram os lábios.
um azul forte correu nos meus ombros
quando os teus ombros foram mais fortes que os meus.

doce e suave era o azul que amei no teu corpo
quando o meu corpo começou a entardecer.
em azuis quase verdes desmaiei os meus olhos
quando os teus me devolveram um azul quase cinza.

é azul o meu desespero
é de azul o meu desencanto
azul frio azul mordente. azul acutilante
e o medo que escorre na minha garganta
é mais azul que o azul metalizado do diamante
são azuis os teus dentes
tão azuis e tão brilhantes que deixam
na minha pele marcas de serpente.
marcas para sempre.

Isabel Mendes Ferreira
Angola

26.5.10

Pomba branca



Pomba branca pomba branca
Já perdi o teu voar
Naquela terra distante
Toda coberta pelo mar
Pomba branca pomba branca
Já perdi o teu voar
Naquela terra distante
Toda coberta pelo mar
Fui criança e andei descalço
Porque a terra me aquecia
E eram longos os meus olhos
Quando a noite adormecia
Vinham barcos dos países
Eu sorria vê-los sonhar
Traziam roupas felizes
As crianças dos países
Nesses barcos a chegar
Pomba branca pomba branca

Depois mais tarde ao perder-te
Por ruas de outras cidades
Cantei meu amor ao vento
Porque sentia saudades
Saudades do meu lugar
Do primeiro amor da vida
Desse instante aproximar
Os campos do meu lugar
À chegada e à partida
Pomba branca pomba branca.

Vasco de Lima Couto

Romance


E cruzam-se as linhas
no fino tear do destino.
Tuas mãos nas minhas.

Guilherme de Almeida
Brasil

Poema do Pescador


Eu não sei de oração senão perguntas
Ou silêncios ou gestos ou ficar
De noite frente ao mar não de mãos juntas
Mas a pescar…

Não pesco só nas águas , mas nos céus
E a minha pesca é quase uma Oração
Porque dou graças sem saber
Se Deus é sim ou não...

Manuel Alegre

Surdo, Subterrâneo Rio


Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.

Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
- surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?

Eugénio de Andrade

Soneto de amor



Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma… Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas…
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua…- unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois…- abre os olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada…
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!

José Régio

25.5.10

Xikalamidade




Se um dia me viste a vagar as ruas da cidade
(qual molweni atribulado na sua vagabundagem)
o corpo constelado de remendos, quase seminu
todavia por todos poros respirando dignidade

hás-de me ver hoje envolto em nova embalagem
caso cruze denovamente a mesma esquina com tu
Não me pergunte o raio por que deixava eu esta
indumentária envelhecer lá bem no fundo do baú

Um pouco de bom-senso e apenas dois dedos de testa
e saberás que ninguém grama de andar com o corpo nu
Se antes de minhas foram alguém que eu desconheço
estas «jeans» coçadas que ao meu corpo se ajustam bem
como se feitas por encomenda, com as medidas que eu meço
é porque em estado natural sempre iguais são os homens

polana/85

Simeão Cachamba
Moçambique

24.5.10

Ao bater da chuva



A porta fechada é uma obsessão.
As vozes caladas em torno de nós,
as pausas alongadas em silêncios de uma angústia
nova,
são a descontinuidade do tempo interrompido
dentro da casa que arrombaram ontem,
no coração da aldeia do Mazozo.
A chuva cai em bátegas doces, a chuva bate o capim
molhado,
e soa...
A humanidade é fria.

As mulheres já choraram tudo
- A Mãe Gonga comandou o coro.
Esvaem-se agora em surdina muda,
que agudiza o bater da chuva.
Os homens dizem de quando em quando
um nome obstinado.

Chamava-se Infeliz
aquele rapaz
que levaram ontem
do coração da aldeia.

A chuva matraqueia ainda e sempre
na porta fechada como uma obsessão.
Como ela nos lembra o som odiado
que dia após dia
nos sobressalta!

Como ela recorda o som da metralha,
que dia após dia
desce o morro da Calomboloca
e bate naquela porta fechada,
obsecada de protecção!

A gente conhece o som da metralha
quando ela vem no fim do dia.
Quando ela vem, silencia a aldeia,
então, em sobressalto, o povo diz:
- Foram fuzilados...

E ninguém sabe do Infeliz,
aquele rapaz que levaram ontem...


Henrique Abranches
(Angola)

O amor é o amor



O amor é o amor- e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?…
O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!
Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos- somos um? somos dois?-
espírito e calor!
O amor é o amor- e depois?!

Alexandre O’Neill

23.5.10

A física do susto


O espelho caiu a parede.
Caiu com ele o meu rosto.
Com o meu rosto a minha sede.
Com a minha sede eu desgosto.
O meu desgosto de olhar,
no espelho caído, o meu rosto.

Cassiano Ricardo
Brasil

Tanto silêncio



Para cá de mim e para lá de mim, antes e depois.
E entre mim eu, isto é, palavras,
formas indecisas
procurando um eixo que
lhes dê peso, um sentido capaz de conter
a sua inocência
uma voz (uma palavra) a que se prender
antes de se despedaçarem
contra tanto silêncio.
São elas, as tuas palavras, quem diz «eu»;
se tiveres ouvidos suficientemente privados
podes escutar o seu coração
pulsando sob a palavra da tua existência,
entre o para cá de ti e o para lá de ti.
Tu és aquilo que as tuas palavras ouvem,
ouves o teu coração (as tuas palavras «o teu coração»)?

Manuel António Pina

Caminho Longe



Caminho
caminho longe
ladeira de São Tomé
Não devia ter sangue
Não devia, mas tem.

Parados os olhos se esfumam
no fumo da chaminé.
Devia sorrir de outro modo
o Cristo que vai de pé.

E as bocas reservam fechadas
a dor para mais além
Antigas vozes pressagas
no mastro que vai e vem.

Caminho
caminho longe
ladeira de São Tomé
Devia ser de regresso
devia ser e não é.

Gabriel Mariano
Cabo Verde

22.5.10

Cidade 1985



Maputo, 1985

De manhã quando acordo
em Maputo
o almoço é uma esperança.
Mãe tenho fome
marido tenho bicha
e mil malárias me disputando a vontade.

De manhã quando acordo
em Maputo
o jantar é uma incerteza
o serviço uma militância política
do outro lado do sono incompleto
e o chapa-cem* um regulado impiedoso
no quatro barra oitenta sem contra-argumento.

De manhã quando acordo
em Maputo
o vizinho já candongou o que me roubou
a estomatologia não tem anestesia
a chuva abriu dialecticamente mais um buraco na estrada
e o conselho executivo continua desdentado de iniciativas.

De manhã quando acordo
em Maputo
Porra para a vizinha que estoirou a torneira do rés-do-chão
Porra para o guarda que não ligou a bomba quando veio a água

Porra para as cem gramas de carne apodrecidos
no silêncio desenergetico de Komatipoort
mais as ó eme sed de efes
e o soldado que ainda não ouviu dizer que os passeios
são lugares públicos
e os fulanizados exploradores de outrora
que se preparam para cuspir na tua campa, ó Mataca,
as ordens de um Mouzinho boer.

De manhã quando me percorro
em Maputo
enfio ominosamente o cérebro numa competentíssima
paciência
desembainho felinamente mais uma mentira diplomática
e aguardo a lucidez companheira me leia
nas acácias em sangue
nos jacarandas estalando sob a sola epidérmica do povo
que este é ainda o eco estridente do Chai
até que Botha seja farmeiro e Mandela Presidente.

Então,
com a raiva intacta resgatada à dor
danço no coração um xigubo guerreiro
e clandestinamente soletro a utopia invicta.

À noite quando me deito
em Maputo
não preciso de rezar.
Já sou herói.

Carlos Cardoso
Moçambique

Claro-escuro



Dia da vida
Noite da morte...
O verso
E o reverso
Da medalha.
E não há desespero que nos valha,
Nem crença,
Nem descrença,
Nem filosofia.
Esta brutalidade, e nada mais:
Sol e sombra -o binómio dos mortais.

Só que o sol vem primeiro,
E a sombra depois...
E à luz do sol é tudo o que sabemos:
Juventude,
Beleza,
Poesia,
E amor
-Amargo fruto que na sepultura,
Em vez de apodrecer, ganha doçura.

Miguel Torga

21.5.10

Chagas de Salitre



Olha-me este país a esboroar-se
em chagas de salitre
e os muros, negros, dos fortes
roidos pelo vegetar
da urina e do suor
a carne virgem mandada
cavar glórias e grandeza
do outro lado do mar.

Olha-me a história de um país perdido:
marés vazantes de gente amordaçada,
a ingénua tolerância aproveitada
em carne. Pergunta ao mar,
que é manso e afaga ainda
a mesma velha costa erosionada.

Olha-me as brutas construções quadradas:
embarcadouros, depósitos de gente.
Olha-me os rios renovados de cadáveres,
os rios turvos de espesso deslizar
dos braços e das mãos do meu país.

Olha-me as igrejas restauradas
sobre ruínas de propalada fé:
paredes brancas de um urgente brio
escondendo ferros de educar gentio.

Olha-me a noite herdada, nestes olhos
de um povo condenado a amassar-te o pão.
Olha-me amor, atenta podes ver
uma história de pedra a construir-se
sobre uma história morta a esboroar-se
em chagas de salitre.

Ruy Duarte de Carvalho
Angola

Carta...



Amor :
a manhã é uma densa juventude
e um caminho de esperança, recolhido.

Com brisas que antecedem os desejos
magoa as ténues águas dos nenúferes
onde os peixes gravitam suas cores.

As crianças brincam já a esta hora.
As suas vozes trocam de harmonia
e sobem, no meu peito iluminado.

O dia acorda o dia e, lentamente,
nos preparamos para envelhecer.

E assim, amor, eu mando-te notícias
sem vontade de ter outra morada
que não seja sorrir e estar contigo.

Passou, agora mesmo, ao rés da rua,
um esquife, vazio de pessoas,
queimando a dor em duas ou três rosas
- quase bonitas de tão pobrezinhas!

Além, um gato, expira nos esgotos
seu gesto melancólico de fome
e um homem - já cansado de ser homem,
encosta-se ao portão dum prédio novo.

É manhã. Um ar lavado e fresco
entorna-se nos rostos apressados
como se a dor não existisse mais.
Que sons, os da cidade, meu amor!

Vasco de Lima Couto

O abismo




Com a sua pele de poço,
pele comprometida com o medo que no fundo fede e a que,
digamos,toda ela adere de uma forma resoluta,
dir-se-ia que se engancha,se pendura,
o branco da memória a alastrar pelo corpo,
um branco tão branco como o das noites em branco
e sobre o qual a idade, exorbitada, hiante, se insinua,
pensos, ligaduras, impregnados de memória,
uma memória onde fulgura a lava dos sentidos que entram
em actividade e lhe disputam os dias idos,
assim ergue a balança,onde sustém o abismo.

Luís Miguel Nava

19.5.10

Maria



O meu amor está triste
e enche-me de cuidados.

Onde está a almofada dos bilros?
Já provaste os dendêns com açúcar?

Não reduzas a valsa a um cheese-burguer
num pub desconhecido!

Ele disse-me - não canses os olhos nos bilros.
O meu amor está triste e enche-me de cuidados.

Alexandre Dáskalos
Angola

Retorno

Nous reviendrons dans nos enfants.

Subo um passeio branco alastrado de sombra,
luz e folhas caídas.
Pela mão vai minha filha,
juntos subimos rente ao fim
da tarde.
Apertando-me os dedos, olhos nos olhos,
minha filha faz-me as perguntas de todas
as crianças.
Seus olhos espelham os meus
e na boquita fresca vagueia o sorriso
que outrora perdi.
Absorto, caminho rumo ao fim do tempo,
ela, rumo ao princípio.
O meu poente roxo é a sua alvorada
estridente.
Termino um pouco onde ela começa,
mas minhas mãos continuam nas suas.
Penso agora na morte sem angústia
e na vida com outro empenho.
Minha filha vai comigo, seus olhos,
seus gestos, seu sorriso,
lembrança de mim.
Vou partindo. Ela apenas chega.
A tarde cai e não é triste morrendo.


Rui Knopfli
Moçambique

18.5.10

Poema 9


Enquanto ponto a ponto coso
uma coisa a outra coisa
tornando um o que era dois ou mais
morreram tantas ........ tantas pessoas

E eu também morri
deixando as minhas mãos
e as partes que cosi

Pedro Tamen,
O livro do sapateiro

17.5.10

Ode aos livros que não posso comprar



Hoje, fiz uma lista de livros,
e não tenho dinheiro para os poder comprar.

É ridículo chorar por falta de dinheiro
para comprar livros,
quando a tantos ele falta para não morrerem de fome.

mas também e certo que eu vivo ainda pior
do que a minha vida difícil,para comprar alguns livros
- sem eles, também eu morreria de fome,
porque o excesso de dificuldades na vida,
a conta, afinal certa, de traições e portas que se fecham,
os lamentos que ouço, os jornais que leio,
tudo isso eu tenho de ligar a mim profundamente,
através de quanto sentiram, ou sós,ou mal-acompanhados,
alguns outros que, se lhes falasse,
destruiriam sem piedade, às vezes só com o rosto,
quanta humanidade eu vou pacientemente juntando,
para que se não perca nas curvas da vida,
onde é tão fácil perdê-la de vista, se a curvaé mais rápida.
Não posso nem sei esquecer-me de que se morre de fome,
nem de que, em breve, se morrerá de outra fome maior,
do tamanho das esperanças que ofereço ao apagar-me,
ao atribuir-me um sentido, uma ausência de mim,
capaz de permitir a unidade que uma presença destrói.

Por isso, preciso de comprar alguns livros,
uns que ninguém lê, outros que eu próprio mal lerei,
para, quando se me fechar uma porta, abrir um deles,
folheá-lo pensativo, arrumá-lo como inútil,
e sair de casa, contando os tostões que me restam,
a ver se chegam para o carro eléctrico,
até outra porta.

Jorge de Sena

16.5.10

Outra coisa




Apresentar-te aos deuses e deixar-te
entre sombra de pedra e golpe de asa
exaltar-te perder-te desconfiar-te
seguir-te de helicóptero até casa

dizer-te que te amo amo amo
que por ti passo raias e fronteiras
que não me chamo mário que me chamo
uma coisa que tens nas algibeiras

lançar a bomba onde vens no retrato
de dez anos de anjinho nacional
e nove de colégio terceiro acto

pôr-te na posição sexual
tirar-te todo o bem e todo o mal
esquecer-me de ti como do gato

Mário Cesariny

Castanheiros, irmãos




Ó castanheiros de folhas de ouro,
Carregados de ouriços que são ninhos
Onde as castanhas dormem como noivos!

Troncos abertos,

Casas abertas,
Ao vosso abrigo
Dormem os pobres,
Pegam no sono,
Passam as noites
Quando cai neve!

Peitos vazios,
Escancarados,
Sem nada dentro,
Nem coração!
Dais lume, calor
E dais sustento para a mesa,
E dais o mais que eu não sei!...

Ó castanheiros de folhas de ouro,
Apenas sou vosso irmão
Em que a terra vos criou
E criou-me a mim também;
Em que vós ergueis os braços
Suplicantes para os céus
E eu também levanto os meus...

Ah! Castanheiros, mas eu
Grito e vós ficais calados!
Seremos, por isto só,
Irmãos? Seremos? Não sei:
Vós tendes roupas de rei,
Eu tenho roupas de Job;
Vós só gritais quando o vento
Vos abre a boca e fustiga:
Então ergueis um clamor...
— Não calo nunca no peito
A dor do meu sofrimento
E nunca chego a dize-la,
Nem há ninguém que me diga.

Ó castanheiros de folha de ouro,
Não,
Eu não sou vosso irmão!...


Branquinho da Fonseca

13.5.10

Poema da amante




Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.

Adalgisa Nery
Brasil

12.5.10

Dá-me a tua mão



Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.

Clarice Lispector
Brasil

11.5.10

Sementeira


1ª versão, 1955

Cresce a semente
lentamente
debaixo da terra escura.

Cresce a semente
enquanto a vida se curva no chicomo
e o grande sol de Africa
vem amadurecer tudo
com o seu calor enorme de revelação.

Cresce a semente
que a povoação plantou curvada
e a estrada passa ao lado
macadamizada quente e comprida
e a semente germina
lentamente no matope
imperceptível
como um caju em maturação.

E a vida curva as suas milhentas mãos
geme e chora na sina
de plantar nosso suor branco
enquanto a estrada passa ao lado
aberta e poeirenta até Gaza e mais além
camionizada e comprida.

Depois
de tanga e capulana a vida espera
espiando no céu os agoiros que vão
rebentar sobre as campinas de África
a povoação toda junta no eucalipto grande
nos corações a mamba da ansiedade.

Oh! Dia de colheita vai começar
na terra ardente do algodão!

José Craveirinha
Moçambique

10.5.10

Filhos da Miséria



Pedaços de fundo
vagabundo
buscando no lixo
um mundo perdido
fugindo de tudo
sábios esquecidos
nunca arrependidos

Vinde
ó ilustres da miséria
a nossa hora está chegando
recompensa merecida
estamos num canto
fechados
vingando o passado
somos o lixo
por este ou aquele motivo

Levantemo-nos Irmãos!
Derrotemos a Razão
vão-se desviar de nós
vão escutar bem alto a nossa voz
rosto aberto
de encontro aos mascarados
somos flores do Inferno
crescemos num deserto
açoitados pelo vento
noite e dia
enfeitiçados
pela morte desejados
somos cinzas
somos restos
despojos amordaçados
corremos mesmo parados
não fujimos quando somos olhados

Esquecidos pela esperança
vagueamos na escuridão
almas desertas
abraços de solidão
entre as pedras adormecemos
companheiros na ilusão
somos pássaros da noite
artistas com vida de cão

Não temos capas de vergonha
não disfarçamos o medo
sentimos o desespero
não trocamos de lugar
não nos podem dominar
já mortos nos hão-de lembrar
enquanto vivos
vão-nos evitar

Está-nos reservado o fel
sabemos porquê
pagamos o preço da liberdade
fugindo do tempo
não temos idade
amantes sedentos
conquistamos cidades

Brincamos como crianças
num jardim de terceira idade
fingimos ser apenas uma flor no paraíso
vingamo-nos da memória
bolsas vazias perdidas no Infinito

Vestimo-nos no escuro
de amor e desespero
saimos noite adentro
buscando alimento

Joaquim Falé
Moçambique

9.5.10

Aforismo



Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.

Estávamos iguais
com duas diferenças:

Não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.

Mas aos dois intencionalmente
podiam por-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.

José Craveirinha
Moçambique

8.5.10

Trono


Pus-te num trono, que é o lugar onde
deve estar quem se ama, esse lugar
da alma que, sendo íntimo, não esconde
a aparência de altar
de uma igreja singular.

Mas, como a crença é sempre vacilante
e não se pode ter por adquirida,
hás-de saber que nada nos garante
que eu fique a venerar-te toda a vida.

Torquato da Luz

4.5.10

Um Homem Nunca Chora



Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.

Eu julgava-me um homem.

Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.

Agora tremo.
E agora choro.

Como um homem treme.
Como chora um homem!

José Craveirinha
Moçambique

Rua da Maianga



Rua da Maianga
que traz o nome de um qualquer missionário
mas para nós somente
a rua da Maianga

Rua da Maianga às duas horas da tarde
lembrança das minhas idas para a escola
e depois para o liceu
Rua da Maianga dos meus surdos rancores
que sentiste os meus passos alterados
e os ardores da minha mocidade
e a ânsia dos meus choros desabalados!

Rua da Maiaga às seis horas e meia
apito do comboio estremecendo os muros
Rua antiga de pedra incerta
que feriu meus pezitos de criança
e onde depois o alcatrão veio lembrar
velocidades aos carros
e foi luto na minha infância passada!

(Nene foi levado pró hospital
meus olhos encontraram Nene morto
meu companheiro de infância de olhos vivos
seu corpo morto numa pedra fria!)

Rua da Maianga a qualquer hora do dia
as mesmas caras nos muros
(As caras da minha infância
nos muros inacabados!)
as moças nas janelas fingindo costurar
a velha gorda faladeira
e a pequena moeda na mão do menino
e a goiaba chamando dos cestos
à porta das casas!
(Tão parecido comigo esse menino!)

Rua da Maianga a qualquer hora
o liso alcatrão e as suas casas
as eternas moças de muro
Rua da Maianga me lembrando
meu passado inutilmente belo
inutilmente cheio de saudade!


Mário Antonio
Angola

1.5.10

Catavina


Obstruído o caminho da transparência
só me resta reunir os fragmentos do sol
nos espelhos
e com eles junto ao coração
atravessar indiferente a desordem matinal
dos mastros.

Quanto mais envelheço mais pueril é a luz
mas essa vai comigo.

Eugénio de Andrade